segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

#projectomeianoite - conto 2

Meia-noite em ponto. Ela olha fixamente para o computador à sua frente. A luz que emitia iluminava toda a divisão ainda vazia.
Meia-noite em ponto. Ela prepara-se para escrever, de novo. Precisava desta rotina mais do que nunca. Precisava desta rotina como um drogado precisa de uma dose. Tecla após tecla, ela transforma em palavras os seus sonhos e as suas angústias.
Esvazia a mente, recicla pensamentos e reutiliza as memórias. Tecla após tecla, entra lentamente num outro mundo, num mundo só dela. Entra num mundo virtual, fruto da sua característica imaginação fértil.
Nessa noite estava presa num labirinto. Procurava ansiosamente por palavras, quaisquer umas. Mas palavras. Talvez perdidas num recanto qualquer do sótão da sua mente…

“Um dia acordei e não me conseguia expressar, feito difícil de igualar! Mas passo a explicar:
Tive um sonho complicado, pensava eu, de raciocínio ensonado, em que todas as palavras saiam mecanizadas, correctamente alinhadas, como uma fila de montagem, sem falhas, sem redundâncias. Sem 'mas' nem 'porquês' possíveis de saber. Directas, frias, inumanas por assim dizer.
Tudo o que me saía da boca transportava uma realidade nua e crua, sem dó nem piedade, e trespassava quem se metesse à frente, fosse ou não o destinatário mal fadado de tal literária crueldade.
E em bem fechava a boca, e bem as queria engolir, mas elas voltavam a subir, maiores, em força, com sede de vingança, e eu, perante tanta ânsia, lá as deixava sair.
Pobres letras, escravizadas por tanta crueldade, aterrorizadas de verdade!
E eu, quando acordei, sem me conseguir expressar, abri a boca num ensonado bocejo, e oh! , o que vejo, um vomitado de letras apavoradas!
Todas encolhidas, bem sofridas, cheias de sangue e de medo, aspecto pavoroso, perdidas num frenesim. Foram arrancadas do meu ser a ferro e fogo!

E para meu espanto, que feito horroroso, já nada restava de palavras em mim!”

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