segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

#projectomeianoite - conto 3

Meia-noite em ponto. 
Abriu os olhos, assustada. Estava tudo escuro. Inclusive o DVD estava desligado. «Não devia ter bebido o segundo copo de vinho’» pensou. Chamou por alguém. Mas que se passava com a sua voz? Não a ouvia!
Levantou-se do sofá, a medo. Tornou a chamar, em mais uma tentativa falhada. Percorreu os longos corredores da casa a procura de alguém. Mas que corredores, se a casa não os tem?
«Onde estou?» Dirigiu-se instintivamente ao WC. Despiu a roupa e preparou-se para um duche antes de se deitar. Finalmente ouve-se um grito naquele silêncio mortífero. Era dela. Corria sangue das torneiras. Fugiu envolta na toalha à procura de alguém. Encontrou um mordomo e tocou-lhe. Ou não. Não tinha a certeza, pois a sua mão atravessou-o, como se de um fantasma se tratasse. As relações com o mundo que a rodeava tinham diminuído drasticamente, ao mesmo tempo que tinham aumentado as conversas consigo própria. A loucura tinha-lhe tomado o cérebro de tal forma que quando o viu achou ser fruto dos seus delírios quase diários. Volta-se em busca de um pingo de realidade naquela alucinação. Perde os sentidos. Vê caras sem rostos a agarrarem-na e a prenderem-na. Mais uma vez tenta pronunciar qualquer palavra. 
Nada sai da sua boca.
Ouve-se um aguçar de lâminas. «Onde estou!?» repete para si a pergunta em desespero. Sente uma dor forte, angustiante e um ardor insuportável. Vê um brinde. Sente-se fraca. Vê de relance um brinde. Copos cheios com um líquido vermelho. Ouve um uivar distante. Ouve risos maléficos. Vê uma luz que quase a cega.
Prostrada no chão gélido, tentava desesperadamente agarrar-se a algo sólido, mais real que a verdade que lhe dilacerava o peito. A mesma verdade que estava diante dos seus olhos. A mesma verdade que a visão, turva pelas lágrimas, se recusava aceitar ver.
Estava completamente entregue a si mesma. O sangue brotava-lhe do abdómen mutilado, arrancando-lhe a vida lentamente.
Naquela noite, como em todas as últimas noites que tinha (ultra)passado sozinha, era apenas um farrapo da mulher que outrora tinha sido. Agora encontrava-se reduzida a pequenos bocados, entulhados numa qualquer esquina escura dos seus pensamentos Passados, apenas à espera de serem cobertos pelos pensamentos Futuros. A Ilusão estava desfeita, os seus Sonhos tinham caído por terra.
Tudo o que tinha dado dela fora diluído no tempo, escrito em areia e levado pelo vento. Lá fora a Lua resplandecia no céu, no seu coração apenas chovia, copiosamente. Ela imaginava lençóis brancos nas janelas, rosas a serem atiradas para o seu caixão, pois parte dela já tinha morrido e iria seguir em procissão. 
Ouve-se o punhal cair junto dos seus restos. Durante minutos de tortura que pareceram eternidades, ele fora empunhado contra ela uma vez e outra e outra. As forças escassearam e mais nada podia fazer senão implorar misericórdia. Como um leve sopro, tudo acalmou. Perduraram as lágrimas, para relembrar a dor que ficou e só quando essa dor tomou conta do seu corpo é que percebeu do cruel fim que a esperava.
Perda de espaço. De liberdade. Aumentou a ansiedade. 
Perda de ritmo, de ilusão. Aumentou a frustração. 
Perda de luz, de cor. Aumentou a dor. 
Perda de ar, de sentidos.
Fechou os olhos. Diminui a batida. Adeus Vida.

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