quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O Natal lá em casa...

O Natal lá em casa começava cedo, no momento em que também começava a procura pelo melhor musgo para o presépio. Nas caminhadas que fazíamos juntos já sabíamos que a dada altura - meados de novembro talvez - os nossos olhos, a mando da Mãe, tinham que ser mais aguçados do que os de uma águia na busca do mais fofo e verde musgo.
Após alguns dias a secar chegava a hora de montar a árvore e o presépio. Todas as figuras embrulhadas delicadamente em pedaços de jornal, as fitas separadas das bolas, em sacos individuais, o teste das luzes e a necessidade de intervenção do meu Pai na troca de alguma lâmpada que tivesse decidido ir mais cedo para a reforma.
Tudo era colocado de forma lógica e carinhosa pelas mãos da minha Mãe e pelo meu olhar atento. A chaminé, a porta da rua, da sala, o centro de mesa, todos tinham direito a uma especial decoração de natal.
Depois de tudo montado começava a contagem decrescente atá ao grande dia, ao mesmo tempo que as prendas se iam acumulando junto à árvore, aguçando a minha curiosidade em espreitar os nomes dos felizes destinatários, tantas vezes quantas ouvia a voz dela ressoar, como se fosse um ponto, "Larga as prendas, no Natal descobrimos!".
O Natal lá em casa começava cedo, quando a minha Mãe começava a andar pelas lojas da terra em busca da prenda perfeita para o meu Pai "O que achas que lhe podemos dar? Ele não precisa de nada, é verdade, mas merece não achas?". A busca durava mas terminava sempre com sucesso. O mesmo não se podia dizer relativamente à nossa  - minha e da minha Mãe - busca pelos lugares secretos onde o meu Pai escondia as prendas que já nos tinha comprado há muito - nunca houve um ano que tivéssemos conseguido descobrir o esconderijo escolhido!
A consoada lá em casa também começava cedo. As compras eram feitas na semana anterior, com tempo, para que no dia não faltasse nada...mas faltava sempre alguma coisa! Ora açúcar, ora chocolate em pó, ora ovos...
Consigo lembrar-me como se fosse hoje a hora da confecção dos doces: a mousse acabada de fazer significava hora de lamber os batedores; a aletria quente nas travessas significava hora de sentar 5 minutos e comer as sobras numa tigela junto à salamandra já acesa desde cedo. As rabanadas ainda a ferverem na travessa significava hora de roubar algumas e escapar às palmadas nas mãos da ladra de doces - eu!
Já à noite, com a mesa posta e com o bacalhau quase pronto começavam as filmagens - sim, as filmagens! Todos os natais registados em vídeo pelo meu pai (com grandes planos que definitivamente deveriam ser cortados caso fossem para transmitir a olhos alheios) e novamente, de fundo, a voz de ponto "Oh homem pára de filmar o meu c* e ajuda a tua filha a pôr a mesa!".
A tradição de Natal não acabava antes da Missa do Galo: fizesse frio ou chuva, às 23h em ponto estávamos a entrar no carro para ir assistir à missa - escusado será dizer que assistia em pulgas, já que era a última etapa que me separava da hora de abrir os presentes e de um último desafio "Abre com cuidado para não rasgar o embrulho! Guarda o laço, dá para aproveitar para outros presentes."
O Natal lá em casa acabou no ano que nos disseste Adeus. Acabou a voz de ponto a orientar-nos o tempo todo. Acabaram as corridas ao musgo, acabaram as decorações pela casa e as luzes a piscar.
Acabaram os assaltos aos doces e aletria quente junto à salamandra.
O Natal lá em casa é agora apenas mais uma entre tantas outras datas que gritam a tua ausência aos nossos ouvidos.

sábado, 7 de setembro de 2019

A linha de comboio


Reza a história que foi construída uma linha de comboio entre Veneza e Viena mesmo sem existir ainda um comboio para fazer o percurso - os habitantes locais, no seu íntimo, sabiam que construindo o caminho o comboio acabaria por chegar para ligar aqueles dois pontos que pareciam tão distantes entre si.
Creio que ainda é assim que nos vejo – dois lugares distantes, isolados. Dois lugares cheios de tudo, de vida, de aventuras, de emoções, dois lugares que lhes falta apenas o caminho a ligá-los. Creio que é nisso que todas as partículas do meu ser, cada molécula e cada átomo, trabalham afincadamente, diariamente, contra a minha vontade. Teimam em construir, sozinhos, um caminho até ti.
E tal como construir uma linha de comboio, construir uma ligação entre nós é um trabalho moroso, por lugares tortuosos, difíceis de aceder e de percorrer. Encontro centenas de pedras e de obstáculos sem fim. Perco as forças, sento-me em derrota e abandono as ferramentas de trabalho respingadas de suor e sangue. Já perdi conta à quantidade de vezes que virei costas a esse trabalho, que procurei rotas alternativas, outros lugares para visitar, menos difíceis, menos inalcançáveis, mas de alguma forma, nesses espaços de tempo que parecem não ter fim, enquanto me encontro à deriva nos meus próprios mares de anseios e emoções, acabo sempre por voltar a essa linha de comboio, meia construída, meia tapada por ervas daninhas e poeira do tempo de abandono. De alguma forma as minhas mão são impulsionadas em agarrar novamente na pá e retomam o trabalho que tinham deixado por terminar. De alguma forma encontro forças para fixar mais um balastro, de avançar mais um pouco em direção a ti, ao teu mundo desconhecido e misterioso.
De alguma forma, há uma voz que não me deixa parar, que me avisa que um dia virá o comboio até ti e que me diz que vou adorar a viagem.