terça-feira, 28 de abril de 2020


Abro os olhos devagar. Chove imenso lá fora e além das gotas de água a atacarem furiosamente os telhados, não se ouve mais nada. 
Os meus olhos fixam o vazio, especados, como se fossem duas crianças com medo do bicho papão.
O meu telemóvel indica que são oito horas e assim me diz que começou mais um dia.
Levanto me a custo, esfrego os olhos e as remelas relembram mais uma noite adormecida com o embalo das lágrimas.
Recordo-o. Recordação que dói, como se tivesse a espreitar um curativo apenas pra me dar conta que a ferida ainda estava aberta. 
A acompanhar o meu cérebro, preso naquele loop de lembranças, estão as minhas passadas mecanizadas. O meu corpo acordou, mas apenas isso. Todo o resto de mim está dormente, anestesiado, como se tivesse tomado uma injeção de morfina para aguentar mais um dia.
Olho-me ao espelho e sorrio ao recordar como é fácil usar uma máscara. Aprendemos desde cedo a construí-las e prendê-las ao nosso rosto - com uma tesoura de pontas redondas recortamos com cuidado o rosto escolhido (branca de neve, fada, anjo, anões, esquilos, o limite era a imaginação) e depois um elástico preso por dois furinhos, um de cada lado. Não muda muito em adultos: dois furos para os olhos e todo o rosto é coberto com base, pó, óculos de sol e esgares de sorrisos forçados... o mundo não precisa saber a escuridão que trago cá dentro.
É incrível - mas que de incrível não tem absolutamente nada - como pode ser fugaz algo que outrora foi tão intenso (pelo menos para um de nós). 
A decisão foi minha, como têm sido todas as decisões nos últimos anos. 
Eu ora decido afastar-me, ora decido ter relações tóxicas, ora decido trair a confiança, ora decido trair o meu amor próprio. 
Eu decido entrar constantemente naquela espiral, como se de alguma forma me fizesse sentir melhor comigo mesma, como se cada entrada em cada montanha russa fosse uma desculpa para o falhanço total que é a minha relação com o aquele filho da mãe: o Amor.
É incrível como em determinas alturas da nossa vida nos conseguimos identificar com determinada música que dá na rádio, ou frase feita na qual que tropeçamos pela internet fora.
Subitamente cremos que o universo nos fala ao coração. Cremos que alguém espia os nossos passos, ouve as nossas conversas (e os nossos pensamentos?) e transforma em frases perfeitamente inteligíveis desabafos que até então balbuciávamos, com severa dificuldade, a ouvidos alheios que ainda tinham paciência para os ouvir (e alguns conselhos destrocados, em sobra, para nos dar). E então aquela melodia que até esse momento trauteávamos distraidamente, aquele conjunto de palavras - das quais sabemos de-trás-prá-frente o significado- subitamente tornam-se como que magicamente iluminadas com brilhos néon e tomam aos nossos olhos (e aos nossos corações desfeitos) proporções emocionalmente gigantescas.
E com isto aquele vazio dilacerante no peito volta, como se dele o meu coração tivesse sido arrancado, desfeito em mil pedaços e atirado ao lixo, como um trapo velho.
Chega então a altura em que só queremos dizer «Chega!». Queremos que a nossa vida seja projetada em forma de livro e possamos saltar diretamente para o último capítulo, só para ter a certeza que acaba tudo bem. 
Queremos a luz de um farol no meio da noite escura num mar agitado que atravessamos.
Queremos uma mão amiga que nos puxe e sacuda o pó da roupa.
Queremos apenas saber que tudo isto vale a pena. 
Que todas as lágrimas, todos os choros sufocados em soluços mudos tragam o final feliz que é vendido como o único final possível. 
No fundo, queremos que a nossa vida seja como a das pessoas felizes dos anúncios de TV: fabricadas em série, todas iguais, todas de sorriso no rosto, pintado a laser, antes de sermos metidos numa caixa, prontos para sermos expedidos para qualquer mercado social. 
Não me abandonou a vontade de viver, essa nunca!, apenas de amar. 
E por fim, com um suspiro solta-se uma última lágrima. 
Tudo o que nunca quis era aquilo a que toda a minha vida aparentemente se resumia, àquele momento.
Será sempre nele que o meu pensamento se vai focar quando o único barulho que o perturbar for o da chuva. 
Será sempre com saudade que o vou (re)lembrar nas noites frias de inverno. 
Será sempre aquele o perfume que vou sentir nas brisas frescas dos finals de tarde no verão. 
Nada mais foi que um amor fugaz de arrebatar os sentidos, um amor fugaz que se desvaneceu, um amor fugaz que nunca foi meu. 
Já não choro, as lágrimas secaram.




domingo, 12 de abril de 2020

A minha Páscoa

A minha Páscoa começava cedo.
Ao contrario de todos os restantes domingos em que ficava a dormir até tarde, que mal acordasse voava para a cama dos meus pais, o Domingo de Páscoa começava cedo, quando os primeiros foguetes começavam a rebentar no céu azul.
Era possivelmente o Domingo mais atarefado do ano e ainda assim eu era sempre a última convidada a chegar àquela festa que já tinha começado tão cedo.
Quando me estava a sentar à mesa para tomar o pequeno-almoço - «Come bem que já sabes que vamos almoçar tarde e depois dá-te a fome!» ouvia a minha mãe avisar, com voz firme mostrando que eu não tinha outra alternativa (logo eu que nunca fui fã de pequenos-almoços adiantados) - já tinha o meu pai chegado com regueifa fresca, já a minha mãe estava a cozer os ovos com casca de cebola e já o assado estava na assadeira, pronta a ligar.
«Anda, tens que te ir vestir, não tarda está aí o compasso e tu de pijama!»
Já tinha a roupa pronta de véspera, roupa a estrear, passada e perfumada porque a Páscoa era sempre altura de ter roupa nova.
Já a minha mãe e o meu pai tinham varrido os passeios e preparado um tapete de folhas e pétalas de flores coloridas, a demarcar o caminho que haveria em breve de ser feito pelo compasso.
«Despacha-te, já se está a ouvir a campainha, o Compasso está mesmo a chegar»
A porta da sala, que raramente era utilizada - apenas para dar entrada ao Sr. da luz quando vinha recolher a contagem - estava nesse dia aberta, bem como as restantes janelas e portas. A luz invadia todos os recantos da nossa pequena e acolhedora casa, inundando o nosso lar com um brilho especial.
«Shhh, já estão aí a entrar, vem para aqui para a beira do Pai, anda.»
A minha mãe dava todas as ordens e controlava todas as etapas, sob o olhar atento do meu Pai.
O compasso entrava, naquele dia os rostos familiares dos nossos vizinhos ganhavam outra altivez e eu sentia-me intimidada pela seriedade do momento. O meu Pai entregava um envelope como mandava a tradição, e em troca recebíamos o crucifixo para beijar e um postal com a oração daquele ano.
Tudo se passava tão rápido e ainda assim quando recordo esses momentos vejo todos os detalhes como se estivessem a passar em câmara lenta.
Com o passar dos anos a Páscoa foi tomando outros contornos, outros lugares até ficar reduzida a mais uma data sem ouvirmos as ordens da minha Mãe.
Este ano, sem ordens, sem festejos, sem abraços.
Há um assado no forno que não posso partilhar com o meu Pai, há ovos da Páscoa que não foram feitos pela minha Mãe e há saudades.
Este ano, sem abraços e sem conversas de deitar fora como este dia exige.
Este ano, a Páscoa pede o derradeiro ato de amor que nos é exigido: isolamento social, resguardo, protecção.
Que este ano sirva para nos lembrar, em todas as Páscoa vindouras e não só, que o importante é o Amor, é a Família, é ter por perto os nossos, com quem partilhar sorrisos, momentos e comida feitas com o coração, pois tudo o resto, é só mesmo isso, o resto.