domingo, 16 de fevereiro de 2020

Como se vive sem uma Mãe?

Para muitos esta pergunta é de resposta óbvia e fácil: bem.
Para mim, é ainda não conseguir falar sem doer o peito, sem apertar a garganta e sem cerrar os dentes com força para as lágrimas não caírem.
Há três anos que ando a tentar saber não como se vive mas como se sobrevive sem ti, sem a minha Mãe, e sei que chegarei ao fim dos meus dias sem o saber.
Três anos. Já faz três anos que te levaram para longe de nós. Três anos que o mundo virou um filme a preto e branco, sem falas, sem as tuas gargalhadas, sem o arco íris do teu sorriso que se apagou e deixou para trás as memórias dos nossos dias felizes.
Tenho tantas saudades tuas, tantas que sufocam, que apertam a garganta como a mão de um assassino, estrangulam o nó dos choros tantas vezes engolidos à força de um sorriso amarelo e um “está tudo bem”. 
São tantas as saudades dos teus conselhos, de ouvir a tua voz serena, de ver o teu sorriso luminoso, de me dizeres que tudo vai correr bem. 
“Pensamento positivo atrai coisas positivas.” Se pelo menos te trouxesse de volta... 
Três anos e nada na tua partida faz sentido. 
A maior parte do tempo é como se estivesse num estado de dormência, uma dor adormecida e mascarada pelo quotidiano, pela roda viva que é a Vida, e do nada, uma pequena frase, um gesto, uma referência tem o efeito Borboleta e tudo desaba em mim. O pouco que se vai reconstruindo cai por terra. Hoje foi uma série, amanhã é uma foto nossa. Fazes-me uma falta tão grande que preciso dos meus sonhos para te ver viva e falar contigo, abraçar-te, ouvir a tua voz.
Para muitos deve ser realmente fácil viver sem uma Mãe, eu mal consigo respirar sem a minha.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O Natal lá em casa...

O Natal lá em casa começava cedo, no momento em que também começava a procura pelo melhor musgo para o presépio. Nas caminhadas que fazíamos juntos já sabíamos que a dada altura - meados de novembro talvez - os nossos olhos, a mando da Mãe, tinham que ser mais aguçados do que os de uma águia na busca do mais fofo e verde musgo.
Após alguns dias a secar chegava a hora de montar a árvore e o presépio. Todas as figuras embrulhadas delicadamente em pedaços de jornal, as fitas separadas das bolas, em sacos individuais, o teste das luzes e a necessidade de intervenção do meu Pai na troca de alguma lâmpada que tivesse decidido ir mais cedo para a reforma.
Tudo era colocado de forma lógica e carinhosa pelas mãos da minha Mãe e pelo meu olhar atento. A chaminé, a porta da rua, da sala, o centro de mesa, todos tinham direito a uma especial decoração de natal.
Depois de tudo montado começava a contagem decrescente atá ao grande dia, ao mesmo tempo que as prendas se iam acumulando junto à árvore, aguçando a minha curiosidade em espreitar os nomes dos felizes destinatários, tantas vezes quantas ouvia a voz dela ressoar, como se fosse um ponto, "Larga as prendas, no Natal descobrimos!".
O Natal lá em casa começava cedo, quando a minha Mãe começava a andar pelas lojas da terra em busca da prenda perfeita para o meu Pai "O que achas que lhe podemos dar? Ele não precisa de nada, é verdade, mas merece não achas?". A busca durava mas terminava sempre com sucesso. O mesmo não se podia dizer relativamente à nossa  - minha e da minha Mãe - busca pelos lugares secretos onde o meu Pai escondia as prendas que já nos tinha comprado há muito - nunca houve um ano que tivéssemos conseguido descobrir o esconderijo escolhido!
A consoada lá em casa também começava cedo. As compras eram feitas na semana anterior, com tempo, para que no dia não faltasse nada...mas faltava sempre alguma coisa! Ora açúcar, ora chocolate em pó, ora ovos...
Consigo lembrar-me como se fosse hoje a hora da confecção dos doces: a mousse acabada de fazer significava hora de lamber os batedores; a aletria quente nas travessas significava hora de sentar 5 minutos e comer as sobras numa tigela junto à salamandra já acesa desde cedo. As rabanadas ainda a ferverem na travessa significava hora de roubar algumas e escapar às palmadas nas mãos da ladra de doces - eu!
Já à noite, com a mesa posta e com o bacalhau quase pronto começavam as filmagens - sim, as filmagens! Todos os natais registados em vídeo pelo meu pai (com grandes planos que definitivamente deveriam ser cortados caso fossem para transmitir a olhos alheios) e novamente, de fundo, a voz de ponto "Oh homem pára de filmar o meu c* e ajuda a tua filha a pôr a mesa!".
A tradição de Natal não acabava antes da Missa do Galo: fizesse frio ou chuva, às 23h em ponto estávamos a entrar no carro para ir assistir à missa - escusado será dizer que assistia em pulgas, já que era a última etapa que me separava da hora de abrir os presentes e de um último desafio "Abre com cuidado para não rasgar o embrulho! Guarda o laço, dá para aproveitar para outros presentes."
O Natal lá em casa acabou no ano que nos disseste Adeus. Acabou a voz de ponto a orientar-nos o tempo todo. Acabaram as corridas ao musgo, acabaram as decorações pela casa e as luzes a piscar.
Acabaram os assaltos aos doces e aletria quente junto à salamandra.
O Natal lá em casa é agora apenas mais uma entre tantas outras datas que gritam a tua ausência aos nossos ouvidos.