Meia noite.
O luar ilumina o quarto, por entre as frinchas da janela. Recostada na cama, acende um cigarro enquanto lhe admira os contornos já sem vida. Respira, calmamente. «Otário.». Levanta-se, embrulhada no seu pudor, e dirige-se ao chuveiro. A água quente percorre-lhe as curvas, acompanhando o ritmo gélido do sangue que escorria na divisão contígua. Enquanto o vapor embacia os vidros, transformando a casa de banho num lugar húmido e repleto de sombras, ela perde-se em pensamentos obscuros, qual barco à deriva numa tempestade.
Na rua ouviam-se o latir dos cães, e o camião do lixo, que decidira passar mais cedo nessa noite, desperta-a. Bolas! O que faria agora com ele?
Enquanto tenta evitar que as gotas de água que pingavam do seu cabelo manchassem a sua obra de arte, contempla os traços daquele que há horas atrás fora um maravilhoso amante. Era um homem já vivido, porém o seu charme e a sua arrogância, disfarçada de soberania, tinham-na enfeitiçado. Desejava-o secretamente. Até aquela noite.
Advogado numa conceituada empresa, e ela uma reles novata, cuja única ocupação aparente era tirar fotocópias. A sua presença indiscreta naquele escritório era desconfortavelmente provocante entre os velhos defensores da (in)justiça.
E como os provocava. Os fatos, que lhe acentuavam as perfeitas linhas do seu corpo, o seu cabelo, meticulosamente preso e imaculado, o seu olhar selvagem, tudo parecia unido com um único propósito. Matar. Ela deixava-o louco. Ele sabia que ela o sabia. Ele sabia que ela o fazia intencionalmente. E mesmo assim deixava-se levar naquele sexo mental com que se deliciava, esgotado, dia após dia.
Queria arranjar algum argumento para ficar a sós com ela, mas nunca nada lhe parecia suficientemente fundamentado, tudo parecia mais uma desculpa esfarrapada. Até aquele dia.
Esperava que continuasse a apreciar a companhia da mesma forma como dizia apreciar antes. «Oh querido.». Era como todos os outros, não estava pronto.
Ocorreu-lhe que alguém deveria lavar os seus lençóis depois. «As nódoas vermelhas não combinam com o tom das paredes.».
Acende outro cigarro enquanto recolhe a sua roupa. Perscruta, cuidadosamente, todos os cantos do quarto, em busca de algo que a pudesse denunciar. Nada. Perfeita como sempre.
«Uma promoção.». Era isso. Era essa a desculpa que iria usar para um reunião privada, que já tinha planeado prolongar-se até depois do expediente. Como já seria tarde, iria convidá-la para jantar, e avaliar se de facto iria valer o esforço. Depois, um drink em sua casa. Tudo imaginado ao mínimo detalhe. Seria naquela noite.
«Uma promoção?». Ele queria promovê-la? Reunião particular às 17h? «Canalha!». Adivinhava já os planos dele. Reunião tardia, jantar, drink, sexo, e no dia seguinte, a promoção teria ficado ao fundo da cama, presa nos lençóis.
Não. Não iria permitir-lhe isso. Não iria deixar que juntasse mais uma estagiária à sua check-list. Afinal de contas, toda a sua vida tinha sido dedicada a eliminar esses porcos da sociedade.
Prostrado numa cama desconhecida, tentava desesperadamente agarrar-se a algo sólido, mais real que a verdade que lhe dilacerava o peito. A mesma verdade que estava diante dos seus olhos. A mesma verdade que a visão, turva pelas lágrimas, se recusava aceitar ver.
Estava completamente entregue a si mesmo. O sangue brotava-lhe do abdómen mutilado, arrancando-lhe a vida lentamente.
As relações interpessoais diminuíram drasticamente, ao mesmo tempo que aumentavam as conversas consigo próprio. A loucura tomara-lhe o cérebro de tal forma, que, quando a viu, achou ser fruto dos seus delírios quase diários.
Só quando a dor tomou conta do seu corpo é que percebeu do cruel fim que o esperava.
Tinha-se encantado com aquela estagiária tão misteriosa, a mesma que agora caminha nua, pisando o seu sangue como se de uma carpete macia se tratasse.
Sem comentários:
Enviar um comentário